quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Os Mitos do Traje


Muito se escreve e se diz sobre o traje, mas nem tudo o que é proferido tem fundamento na Tradição Académica. A abolição da obrigatoriedade do uso do traje e o período pós-crise académica de 1969 parecem ter contribuido para a invenção de inúmeras “regras” e “tradições” que nunca existiram, tendo muitos destes mitos surgido nos anos 80!
OS CALOIROS PODEM TRAJAR?
Como já foi abordado no texto anterior sobre o Traje, o caloiro tem o direito de trajar, direito esse automático e concedido meramente pela sua entrada na faculdade.[1][2] O Traje não é da Praxe e nenhum organismo praxístico pode decidir quem pode ou não trajar.
SÓ POSSO TRAÇAR A CAPA, PELA PRIMEIRA VEZ, NA SERENATA?
Não. As cerimónias apelidadas de “traçar da capa” surgiram recentemente, muitas delas tendo menos de 15 anos de existência.[1] Na realidade estas “cerimónias” são uma deturpação de algo historicamente costumeiro: a imposição e baptismo da capa (mesmo depois de usada). O baptismo/imposição da capa era algo meramente simbólico, realizado pelo padrinho.[1] “Havia em Coimbra a tradição dos padrinhos dos caloiros lhes “baptizarem” a capa e o gorro, atirando-os ao chão, pisando-os e salpicando-os com gotas de vinho, costume que ainda se pratica na década de 1980”(António Nunes).[1][3]
A capa pode ser traçada pelo caloiro ou por qualquer outra pessoa que ele escolher, quando ele quiser. Não há qualquer mal em traçar pela primeira vez na Serenata Monumental! Simplesmente não se pode alegar a existência de uma norma ou tradição, nem tornar isto obrigatório!
TENHO DE TRAÇAR A CAPA PARA PRAXAR?
Não.[1] Sabemos que isto pode ser uma novidade para muitos, uma vez que vários códigos de Praxe preconizam uma suposta “obrigatoriedade” em função de diversos motivos. No entanto, secundum Praxis há apenas 2 momentos em que é obrigatório traçar a capa: na Serenata Monumental e em Trupe. [4] De resto, a capa traça-se quando bem se entender exceptuando em momentos solenes (capa descaída sobre os ombros) ou em períodos de luto.[4]  Ou seja, dizer que é obrigatório traçar a capa para praxar não tem qualquer fundamento na Tradição Académica nem é suportado pela Praxe.
A Praxe não dita que se tenha de traçar a capa para praxar! Afirmar o contrário é de certo modo ignorar a Praxe e tentarmo-nos sobrepor a ela.
SE ALGUÉM MAIS VELHO ESTIVER DE CAPA TRAÇADA TAMBÉM A TENHO DE TRAÇAR? E SE ELE MANDAR?
Não. Se alguém vos exigir que tracem a capa sem ser quando a Praxe assim o preconiza, deverão questionar o porquê. A partir daí agem consoante a vossa consciência e espirito crítico.
PODE-SE VER O BRANCO DA CAMISA?
Sim! Aliás, quando trajados a rigor (momentos formais) as mangas devem estar abotoadas, tal como se estivessemos a usar um fato, secundum praxis (é uma regra de boa etiqueta).[4]
De resto, as mangas arregaçam-se quando quisermos.[4] Aliás, há inúmeras fotografias antigas em que os estudantes se apresentam de capa traçada e de colarinho à mostra, conjuntamente com as mangas da sua camisa.[vede 4]
QUAL É O PROPÓSITO DA COLHER NA GRAVATA?
O uso da colher na gravata não é Praxe e não tem qualquer fundamento na tradição académica.[5]
Nunca se usou qualquer colher no traje estudantil, aliás apenas a partir da 2ª metade do séc. XIX é que os tunos espanhóis usavam colheres de madeira (1 ou 2) no seu bicórneo (algo que caiu em desuso generalizado a partir da década de 1920).[5]
Em Portugal não há qualquer tradição de uso de colheres na gravata.[5] Ainda para mais colheres roubadas, como muitos códigos estipulam. Promover o roubo num código de praxe é um atentado à Praxe e à Lei Portuguesa. A Praxe respeita acima de tudo a Lei Portuguesa.
Em Praxe temos a colher enquanto insígnia de Praxe e nada mais.
É VERDADE QUE NÃO SE PODE LAVAR A CAPA?
Não, de todo!
No tempo em que o traje era a indumentária diária do estudante (quando o uso era obrigatório) era natural que ele se sujasse e rompesse com o uso intensivo, e os estudantes que não tinham posses não podiam pagar outro traje.[6]
No entanto, o uso do traje aprumado e limpo era obrigatório!!! Não existem registos de estudantes com trajes imundos, porque o aprumo era uma obrigatoriedade.[6] Portantom não existe qualquer fundamento histórico para não se lavar o traje ou a capa, antes pelo contrário!
Edital de 25/04/1862: "qualquer estudante que for encontrado em público com vestido talar académico, sem ser limpo e decente, como ordena o art.º 27 do Regulamento da Polícia Académica de 25 de Novembro de 1839, será recolhido à casa de detenção académica pelso empregados da Polícia Académica que o encontrarem, ou dele tiverem notícia, dando-me logo parte de assim o terem praticado".[6]


SÓ POSSO ESTAR AFASTADO DA CAPA X METROS?
Não existe qualquer regra que determine quantos metros nos podemos afastar da nossa capa.[4] Aqui impera o bom senso. Se eu não quero perder a capa nem quero que seja roubada então é boa ideia não a deixar fora de vista (preferível seria não a abandonar).

POSSO ESTAR DE CAMISA, SEM A BATINA/CASACO VESTIDO QUANDO ESTOU TRAJADO?
É imperativo estar correctamente trajado nas actividades em que, por tradição, o estudante se deve apresentar rigorosamente uniformizado.[4] De resto, impera apenas o dever moral e o nosso brio pessoal, e o desejo de dignificar o traje que vestimos e que representa todos os estudantes.[4]
Ou seja, se estiverem a almoçar num café obviamente que não têm de estar de casaco vestido! Mas se forem participar no gozo ao caloiro, numa cerimónia solene, numa Serenata Monumental, entre outros, é óbvio que terão de estar correctamente trajados.

POSSO USAR ANÉIS DE COMPROMISSO COM O TRAJE?
Sim. Não há qualquer impeditivo histórico nem fundamento suportado pela Tradição Académica. Aliás, acima de tudo somos namorados(as) ou casados(as).
POSSO USAR RELÓGIO DE PULSO COM O TRAJE?
Sim. A proibição do uso de relógios de pulso promovida por diversos códigos é na realidade um equívoco.[7]
O relógio de pulso surge na 2ª metade do séc. XIX[7], tendo-se popularizado não só por ser moda mas também por ser prático e barato, ao contrário dos relógios de bolso. Dizer que era comum os estudantes usarem relógios de bolso é falacioso, precisamente porque muitos não os podiam pagar, tendo sido usado até à década de 40-50.[7]
A proibição nasceu apenas na década de 80-90 do século passado, por mero equívoco.[7] Ou seja, secundum praxis não há nada que impeça o uso do relógio de pulso.
SÓ HÁ NÚMEROS ÍMPARES EM PRAXE?
Este é um mito que surgiu na “era dos mitos”, as décadas de 80-90.[8] Antes dos anos 90 não há nada que indique que isto é Tradição.[8] Não é Tradição nem é Praxe.[8]
A maioria das explicações dadas é baseada numa analepse.[8] Justificam-no com motivos religiosos, como o simbolismo do número 3 e do 7 no catolicismo.[8] No entanto, a própria religião está repleta de números pares: 12 apóstolos, 10 Mandamentos, 40 dias, etc.
Aliás, não faz qualquer sentido recorrer a justificações de ordem religiosa quando o próprio traje académico foi resultado de uma demarcação da Igreja, tendo-se passado de um corte talar para um modelo burguês e sobretudo laico. Seria incongruente se os anti-clericais usassem um Traje com protocolo baseado em simbologias cristãs.[8]
Se pensarmos bem, se o casaco tiver 3 botões e 3 casas, vamos formar 3 pares, usamos um par de sapatos e até o “Dura Praxis Sed Praxis” tem 4 palavras![8]
Assim sendo, os números pares têm tanta legitimidade como os ímpares, não havendo qualquer regra ou fundamento histórico que suporte a sua distinção.



in Identidade(s) e moda, Percursos contemporâneos da capa e batina e da sinsígnias dos conimbricenses. Bubok, 2013, p.73, nota n.º 237. [3]

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